Vivemos um momento delicado no âmbito político LGBT. Um momento em que padrões e estereótipos de gênero vem sendo questionados e, na busca por romper com o preconceito e a discriminação, há um holofote sobre homens que “perfomam feminilidade”: gays afeminados, drag queens, e outros. A intenção desse texto não é discriminar ou apoiar qualquer violência sofrida por aqueles que o fazem, mas sim refletir sobre o que há, ou não, de libertador nessas práticas.

À primeira vista, pode parecer muito libertador e revolucionário um homem que rompe com esteriótipos masculinos de comportamento, que se veste com roupas femininas, se maquia, usa salto alto, usa joias, etc. Mas se pararmos a análise por aí, estamos deixando de lado aspectos importantes da construção social que existem por trás disso.

Para entender isso melhor, é necessário primeiro definir o que é gênero. “Gênero é o sentimento de pertencimento a um grupo, é uma categoria indenitária” — algumas pessoas responderão. Outras, dirão ainda que gênero é “uma maneira de se apresentar socialmente, uma performance”. Tais definições lidam com as manifestações conjunturais e superficiais desse conceito. E há sérias consequências em parar a análise nisso: tratamos o sintoma de uma doença como a sua causa.

Acredito que será consenso quando digo que não há o menor sentido em uma pessoa branca se identificar como negra. Ou até mesmo se pintar de negra como forma de se libertar. Essa pessoa pode se identificar com a luta negra, com aspectos culturais negros, pode ser um apoiador da causa negra. Mas, enquanto branca, dizer que sofre racismo e que ela é negra por que “se sente assim” nada mais é do que uma ingenuidade e uma forma violenta de invisibilizar a questão racial na nossa sociedade. Então por que com gênero devemos pensar diferente?

Gênero é uma hierarquia entre os Sexos. Ele se apoia nas diferenças biológicas entre machos e fêmeas para justificar e naturalizar a construção social de determinados comportamentos, que levam a um sistema de castas sexuais, no qual a existe um grupo explorado (Mulheres) e um grupo explorador (Homens). Para se reforçar e delimitar essa relação, ao longo da história da sociedade ocidental, foram criados recursos simbólicos, signos, comportamentos estereótipos e expectativas sociais para os dois grupos. Alguns exemplos aqui: cor de rosa, saia, vestido, maquiagem, salto alto, sutiã, ausência de pelos, submissão, maternidade compulsória, atividades domésticas, delicadeza, ternura, sensibilidade, possibilidade de errar, castidade, pureza, gostar de homem — Símbolos atribuídos ao universo Feminino, os quais uma fêmea deve seguir para ser uma “mulher”; Azul, bermuda, pelos, sujeira, carros, violência, liderança, dominação, repressão emocional, virilidade, liberdade sexual, poder de fala, gostar de mulher — Símbolos atribuídos ao universo Masculino, os quais um macho deve seguir para ser um “homem”.

Um dos principais recursos utilizados para manutenção desta hierarquia e para garantir o acesso sexual às mulheres por partes dos homens é a chamada Heterossexualidade Compulsória, em outras palavras, uma socialização que naturaliza e normaliza a heterossexualidade, que coloca como correto e “natural” atrair-se sexualmente por pessoas do outro sexo. Também por isso, se estabelece uma relação de dominação masculina e submissão feminina.

Romper com todas essas caixas e definições e experimentar elementos do outro universo parece um momento de libertação e emancipação, não? Depende de quem o faz. Os elementos que compõem o universo feminino foram construídos para delimitar e subjugar mulheres. Pensemos um instante no prejuízo físico do uso de sapatos com salto alto, pensemos nos padrões de beleza e estética imposto através da maquiagem, cirurgias estéticas, dos cabelos longos, da magreza, da depilação e da moda. Ou como a vestimenta feminina sempre foi voltada para agradar os homens, passando por suposto processo libertário através da hipersexualização. Todos, naturalizados como parte da socialização feminina. Romper com isso é libertador para mulheres, uma vez que elas são as exploradas pelo sistema. Essa atitude não tem o mesmo peso para o homem, que já é privilegiado nesse sistema. Podemos entender isso como uma tentativa para lidar com a frustração de não atender as exigências de sua casta masculina.

Quando não participamos da heterossexualidade compulsória, nós gays passamos por um processo segregação sociocultural peculiar. Uma vez que não nos adequamos a essa estrutura de exploração no âmbito sexual, somos empurrados pela sociedade e pelo mercado em direção ao outro polo de comportamentos existentes, aquele tido como da casta feminina. Não é coincidência que homossexuais recebam xingamentos misóginos que os comparam às mulheres. Ao incorporarem elementos do universo feminino, fugindo do comportamento de macho “padrão”, gays padecem de uma ínfima parcela do que mulheres enfrentam diariamente por conta de sua socialização. Esse processo parece intensificar-se quando fazemos um recorte socioeconômico dessa situação: quanto mais na periferia, mais o jovem gay é empurrado ao polo de comportamento feminino, ao ponto de muitas vezes ser levado a crer que ele é “uma mulher presa no corpo de um homem”. Feminizar-se é exatamente o que a sociedade espera de nós, parar que ela encaixe qualquer discordância com gênero na categoria oprimida e possa perpetuar os dois polos de comportamento que sustentam o patriarcado e a heterossexualidade compulsória. A grande mídia se aproveita disso, ao vender personagens estereotipados em suas produções que só reforçam essa imagem da bicha afeminada ao público.

A feminilização traz consigo a discriminação e a violência, das quais o jovem gay afeminado e pobre é a principal vítima. E reforço, que nada justifica a violência misógina que essas pessoas sofrem por agirem desta forma, mas o fato delas serem forçadas ao polo de feminilidade por serem gays já é em si uma violência. Por conta desse processo, outros aspectos da heterossexualidade compulsória acabam sendo reproduzidos nos relacionamentos gays: perpetua-se a ideia de papeis de gênero através do passivo, inferiorizado, penetrado e submisso, que associado diretamente a figura da mulher; e a posição do ativo, superior, dominador, penetrador, que associado ao comportamento do homem. Poderíamos ainda falar do falocentrismo, da supervalorização e fetichização do pênis grande, e da cultura do estupro, mascarada de consentimento no sadomasoquismo.

A homofobia, esse ódio estrutural que aflige a homens que amam outros homens, é um dos produtos do machismo e a perseguição que sofremos por isso agrava-se quando há feminização. A forma como gays são diretamente associados ao feminino é preocupante, porque o feminino não é libertador, nem para mulheres, nem para nós. Já que somos expurgados de nossa casta, somos convencidos que a única maneira de existir em sociedade é como “mulher”. Esse mesmo argumento fez com que surgissem os procedimentos adequação genital, amplamente difundido no meio trans.

Não me surpreende que quase não se celebre mulheres que se libertam das expectativas sociais de sua casta. Afinal de contas, a emancipação feminina não é do interesse do sistema de gênero. Por outro lado, enaltecer a “coragem” do homem em usar vestido, aplaudir o concurso para ver qual dos machos é capaz de agir e mimetizar-se de modo mais “feminino”, ou até mesmo tomar as dores do pobre jovem afeminado é muito mais útil a casta exploradora. Assim, machos podem se comportar como mulheres, sem abicar de seus privilégios.

Quando um homem deliberadamente se veste com peças femininas, ou se “fantasia de mulher” para se “libertar” esbarramos também na questão da Misoginia, que é o ódio, desprezo ou repulsa às mulheres e suas características associadas. Resumir uma mulher a um trejeito, a um comportamento, a uma vestimenta é reforçar o sistema do qual as mulheres lutam á séculos para se libertar. Enquanto as mulheres estão tomando as rédeas de sua luta, se conscientizando, rompendo a feminilidade, deixando de se depilar, de se maquiar, de serem mães, lutando contra padrões de beleza racistas e gordofóbicos, homens estão brincando de usar saia e maquiagem, debochando da socialização feminina e transformando a condição das fêmeas em nossa sociedade em uma piada, uma “escolha como outra qualquer”, uma “identidade”, como se isso fosse algo libertador.

É fácil para o grupo dominante utilizar-se desse discurso que flexibiliza as fronteiras de comportamento e símbolos entre os dois gêneros como algo libertador. Mas esse processo superficial tira o foco da real luta que está sendo travada pelas mulheres por sua libertação.

Somos gays, e essa discordância com as expectativas para o nosso gênero nos traz ônus sociais. Mas acima disso, somos homens. E essa característica nos concede privilégios desde antes de nosso nascimento que carregamos por nossa vida, mesmo que com ou sem barba, com vestido ou com maquiagem. Quer mesmo se libertar? Que tal parar de reproduzir padrões heterossexuais no seu relacionamento? Que tal parar de ver pornografia? Que tal parar de fetichizar etnias? Que tal parar de falar mal do vestido ou do peso da cantora pop? Que tal parar de falar que tem nojo de vagina? Que tal respeitar e apoiar suas amigas?

Se mesmo consciente disso, você individualmente acredita que estará se libertando ao se feminizar, tenha consciência que sua ação é um ato deliberado de misoginia e um deboche com quem sofre com a feminização. Usar elementos simbólicos usados para oprimir uma classe, sendo um membro da classe opressora nunca é libertador, é um desrespeito.

Gay Anti-Queer

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Gays Pela Abolição de Gênero

Gays pela Abolição de Gênero (antiga Gay AntiQueer) é um coletivo formado por homens gays alinhados por ideais materialistas e abolicionistas desde 2015.